CAROLINA
Carolina, nos seus olhos fundos guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei, que não vai dar, seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar, é hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor, uma rosa nasceu, todo mundo sambou, uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo, pela janela, ah que lindo
Mas Carolina não viu...
Carolina, nos seus olhos tristes, guarda tanto amor, o amor que já não existe,
Eu bem que avisei, vai acabar, de tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar, agora não sei como explicar
Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela e só Carolina não viu.
Chico Buarque
Às 16 horas de 05 de outubro de 1988, quarta-feira, promulgou-se a nova Constituição do Brasil [1]. Todo o povo estava ávido por um novo país, uma nova sociedade, uma nova era...
Muitos morreram por isso, mas agora somos todos iguais perante a Lei; os fundamentos da República estão assentados na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e na livre iniciativa e, finalmente, no pluralismo político; o objetivo da República agora era a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; os direitos individuais e sociais agora tinham força constitucional...[2]
Vinte anos se passaram.
Que balanço pode fazer o Movimento Popular? Quais as promessas cumpridas e por que tantas outras não foram cumpridas? Será que o tempo passou na janela e só Carolina não viu?
Antes dessa discussão, no entanto, precisamos relembrar, mesmo rapidamente, os fundadores do constitucionalismo e lhes perguntar: “o que é mesmo uma Constituição?”
I - LASSALLE: QUE É UMA CONSTITUIÇÃO?
Quase que obrigatoriamente, Ferdinand Lassale é nosso ponto de partida.
Em sua obra básica[3], Lassalle inicia sua exposição com uma insistente indagação: “Que é uma constituição? Onde encontrar a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma constituição?”
Para responder a indagação, nosso autor propõe um método comparativo entre Lei e Constituição. Assim, para Lassalle, a Constituição, considerada como a Lei Fundamental, deverá apresentar as seguintes características: (i) que seja uma lei básica, mais do que as outras comuns, que seja “fundamental”; (ii) que constitua o verdadeiro fundamento das outras leis, devendo informar e engendrar as outras leis comuns originárias da mesma, atuando e irradiando através da lei comum; (iii) que exista porque necessariamente deva existir, que tenha força de eficácia para que seu conteúdo seja assim e não de outro modo.
Superada a indagação inicial, Lassalle (1980, p. 18) nos apresenta o conceito que vai nortear, definitivamente, o seu conceito de Constituição: “os fatores reais do poder.”
Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.
De forma extremamente didática e ilustrativa, Lassalle convida seus ouvintes para o exercício constituinte após um hipotético incêndio nos arquivos, depósitos e bibliotecas públicas da Prússia. Merece ser lembrado que a Prússia de Lassalle vivia a transição das insurreições de 1848-49 para as guerras de unificação do território germânico e Berlim, local de sua palestra, conta com grande massa de operários influenciados por seu próprio pensamento socialista e das idéias revolucionárias de Karl Marx.
Pois bem, seguindo sue exercício com a platéia, Lassalle inclui como “partes da Constituição” as classes e grupos sociais então em conflito na Prússia de 1862: a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe operária e, por fim, de forma limitada, a cultura geral da nação e a consciência coletiva.
Logo, o rei iria advertir aos hipotéticos constituintes que o exército lhe obedece ordens e que é esta “a realidade” a ser considerada; a aristocracia, entendida por Lassalle como grandes proprietários de terras, também não permitirá a proposta de uma Câmara dos Deputados eleita pelos votos de todos os cidadãos, visto sua grande influência na corte; a grande burguesia, de sua vez, jamais permitirá o retorno ao sistema feudal, pois assim não poderia se desenvolver e expandir com a liberdade que necessita; o governo não suportaria uma mudança radical no sistema bancário, visto que necessita de seus empréstimos e não iria se indispor com os banqueiros; da mesma forma, o governo, mesmo querendo, não poderia privar a pequena burguesia de sua liberdade pessoal, visto que o povo poderia até admitir a privação temporária de liberdades políticas, mas jamais aceitaria o retorno à escravidão. Por fim, conclui Lassalle, que a essência de uma Constituição “é a soma dos fatores reais do poder que regem um país.” O que vai ser escrito – os fatores reais do poder – será, portanto, a Constituição jurídica.
Lassalle disserta em seguida sobre a incipiente história constitucionalista, concluindo que “todos os países possuem ou possuíram sempre uma Constituição real e verdadeira,” embora como resultado dos fatores reais do poder que regiam em cada país. A diferença, nos Estados Modernos, será a necessidade de uma Constituição escrita em folha de papel como resultado das transformações que afetam os fatores reais do poder de uma determinada sociedade. Assim, por exemplo, um regime feudal demanda uma Constituição feudal ao passo que um regime absolutista, resultado das transformações dos fatores reais do poder, também demandará uma Constituição que lhe garanta o poder.
É fácil concluir, como o fez Lassalle, que uma Constituição escrita será boa e duradoura quando corresponder à Constituição real e tiver seus fundamentos nos fatores reais do poder que regem um país. Portanto, de nada servirá, na compreensão de Lassalle, o que se escrever em uma folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder. Caso contrário, a Constituição estará liquidada e não existe força que poderá salvá-la.
Por fim, conclui Lassalle (1980, p. 72) que o problema constitucional é de poder:
Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.
Quais seriam, de outro lado, os fatores reais do poder que regiam um país ainda em reconstrução – física, cultural, jurídica e política - após ser derrotado em uma guerra, ocupado e dividido por outros países, ou seja, da Alemanha de Konrad Hesse em 1959?
Ou, mais que isso, ou diferente disso, a Constituição tem, de fato, força normativa? É a discussão que faremos adiante.
II - HESSE: A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO
Hesse[4] não deixa dúvidas de que pretende, em sua aula inaugural, ter o pensamento de Lassalle como referencial, visto que inicia sua palestra exatamente fazendo referência à conferência de Lassalle, de 1862, e questionando-o:
Afigura-se justificada a negação do Direito Constitucional, e a conseqüente negação do próprio valor da Teoria Geral do Estado enquanto ciência, se a constituição jurídica expressa, efetivamente, uma momentânea constelação de poder. Ao contrário, essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição.
Assim, para Hesse, o pensamento de Lassalle é limitado e nega o Direito Constitucional enquanto ciência ao restringir a Constituição a circunstâncias momentâneas de poder. Onde estaria, portanto, indaga Hesse, a força determinante do Direito Constitucional?
A resposta oferecida por Hesse, (1991, p. 13), que vai ser a idéia central de seu pensamento, está relacionada com o “condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social.” A compreensão isolada desses fenômenos – Constituição e realidade – segundo Hesse, não oferece resposta adequada, pois, de um lado, corre-se o risco de limitar a resposta em torno da vigência ou não da norma e, de outro lado, arrisca-se a desprezar o significado da ordenação jurídica. Dessa forma, sem isolamentos, a pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta as condições históricas de sua realização, bem como as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais, numa relação de interdependência e que também contemple, por fim, “o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo.”
Entendendo assim, a Constituição não poderá se limitar a expressão do “ser”, mas também do “dever ser.” Divergindo frontalmente de Lassalle, esta compreensão de Hesse importa que a Constituição deverá imprimir ordem e conformação à realidade política e social, determinando e ao mesmo tempo sendo determinada, condicionadas mas independentes. De outro lado, não muito diferente de Lassalle, Hesse (1991, p. 18) também reconhece que “a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo.” Idéia essa – forças e tendências -, assim quer nos parecer, grosso modo, bem próxima dos “fatores reais do poder” de Lassalle.
Superada essa questão, Hesse avança seu discurso com relação à força normativa da Constituição e a vontade da Constituição. Reconhece o autor que a Constituição, por si só, não pode realizar nada, mas pode impor tarefas, sua vontade, que se baseia em três vertentes: (i) a compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio; (ii) a compreensão de que esta ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos e, por fim, (iii) na consciência de que essa ordem não será eficaz sem a presença da vontade humana.
Mas ainda não é o bastante. O modelo constitucional de Hesse necessitaria, para ter eficácia e força ativa, em pressupostos relacionados ao conteúdo e práxis constitucional. Quanto ao conteúdo, segundo Hesse, além dos aspectos sociais e políticos já mencionados, a Constituição deverá incorporar o “estado espiritual” do seu tempo, bem como procurar se limitar a poucos princípios fundamentais, sob pena de constantes revisões e desvalorização de sua força. Por fim, a Constituição, ainda com relação ao seu conteúdo, não deve assentar-se em uma estrutura “unilateral”, mas ponderar direitos e deveres e parte da estrutura contrária, sob pena de distanciamento da realizada e perda de sua força normativa.
Com relação à sua práxis, defende Hesse osobrestamento do interesse momentâneo em face do respeito à constituição; a estabilidade e rigidez da Constituição como condicionantes fundamentais de sua eficácia e, por fim, que seja a Constituição interpretada com submissão ao princípio da “ótima concretização da norma.”
Como vimos, Hesse não dissocia a Constituição da realidade político-social e, da mesma forma, diferente de Lassalle, não limita sua realização aos “fatores reais do poder”, defendendo uma relação de interdependência entre realidade e Constituição, possibilitando a concretização de tarefas por ela mesma impostas, o “dever ser.”
Conclui Hesse, (1991, p. 24), finalmente, que:
Nenhum poder do mundo, nem mesmo a Constituição, pode alterar as condicionantes naturais. Tudo depende, portanto, e que se conforme a Constituição a esses limites. Se os pressupostos da força normativa encontrarem correspondência na Constituição, se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranqüilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade.
Em tal momento histórico, superado o trauma alemão com o Terceiro Reich, absolutamente justificável a preocupação de Hesse com a força normativa da Constituição em relação à proteção do Estado contra o arbítrio.
Até aqui, tendo entendido Lassalle e Hesse, podemos dizer que já temos a idéia do que seja uma Constituição, mas não temos ainda a resposta sobre o não cumprimento de suas promessas, de seu capítulo programático.
É o que discutiremos a seguir.
III – AS PROMESSAS NÃO CUMPRIDAS
Nosso processo constituinte selou a transição no aspecto institucional e, de outro lado, inseriu no ordenamento uma Constituição extremamente minuciosa, com dispositivos específicos acerca dos princípios e objetivos da República, além de uma vastidão de direitos individuas e sociais, ou seja, a Constituição garantia a transição da antiga ordem e, ao mesmo tempo, estabelecia metas e programas a serem realizados pela nova ordem.
Em vista das proposições de Lassale, portanto, nossa Constituição seria o resultado dos “fatores reais do poder” de então e representa questões de Direito ou simplesmente de Poder? De outro lado, conforme proposto por Hesse, qual seria o condicionamento recíproco entre a Constituição Jurídica e a realidade político-social?
Em um ou outro caso – Lassalle ou Hesse – como efetivar suas promessas?
O Direito Constitucional, a meu ver, sozinho, não oferece os instrumentos e categorias necessárias para respostas das questões propostas. Sem conceitos históricos e de ciência política jamais poderemos compreender o significado político do processo constituinte brasileiro de 1987/88 e a razão do texto e promulgado.
Da mesma forma, sem os mesmos conceitos e categorias não teremos condições de responder por que, passados vinte anos, a Constituição Federal de 1988 ainda não cumpriu suas promessas.
Ora, os “fatores reais do poder” de Lassale, como fantasmas, ronda a efetividade de nossa Constituição e só permite o cumprimento do que a dialética desses fatores permite? Ou será que os “fatores reais do poder” continuam atuando no período pós-constituinte? Ou será que falta “vontade constitucional” no Brasil para executar sua Constituição, conforme defendido por Hesse?
Precisamos de mais compreensão sobre o fenômeno social e político para responder.
Necessário, no nosso entender, buscar a compreensão sobre a formação da sociedade brasileira, a conjuntura e correlação de forças no processo constituinte, bem como discutir os conceitos de sociedade civil e hegemonia.
Mesmo que de forma rápida e sucinta, portanto, dialoguemos um pouco com Gramsci.
IV - OS CONCEITOS GRAMSCIANOS
Gramsci nasceu em 1891, na Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália. Desde cedo militou em partidos de esquerda e foi eleito deputado pelo PCI em 1924. Foi preso em 1926 e libertado em 1937, poucos dias antes de sua morte. É vastíssima sua contribuição intelectual para a ciência política e, especificamente, na evolução do Marxismo.
Neste trabalho, interessa-nos em Gramsci apenas uma breve introdução aos seus conceitos de sociedade civil e hegemonia, relacionando-os aos conceitos de “fatores reais do poder” de Lassalle e a realidade social-histórica-constitucional de Hesse.
Inicialmente, releva salientar a importância do pensamento de Gramsci para os conceitos de Estado e Sociedade Civil para além do marxismo dogmatizado. Por exemplo, estudando o pensamento político de Gramsci, Carlos Nelson Coutinho (1999, p. 125) observou, com muita propriedade, que Marx não teve a oportunidade de vivenciar uma sociedade mais complexa como aquela vivida por Gramsci e não pôde, por conseguinte, captar plenamente as relações de poder em uma sociedade capitalista desenvolvida, principalmente aquilo que Gramsci chamaria de “sociedade civil” e “aparelhos privados de hegemonia.”
Sobre o conceito de Estado, em 07 de setembro de 1931, Gramsci (2005, p. 84) escreveu carta a Tatiana Schucht e observou que o Estado, habitualmente, é entendido como o aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção, e não como equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil, porém, mais que isso, o conceito de Estado tem sentido mais amplo e comporta duas esferas principais: a sociedade política e a sociedade civil. A primeira acepção, que Gramsci também chama de Estado em “sentido estrito” é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência. A segunda acepção, que nos interessa nesse estudo, inicialmente, a sociedade civil, na interpretação de Carlos Nelson Coutinho, (1999, p. 127) seria formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa) etc.
É no espaço da sociedade civil, portanto, segundo Gramsci, que as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso por via dos “aparelhos privados de hegemonia.”
Nas palavras do próprio Gramsci:
Podemos fixar dois grandes planos superestruturais: o que podemos chamar sociedade civil, isto é, o conjunto dos organismos vulgarmente chamados privados, e o da sociedade política do Estado, que correspondem, respectivamente, à função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a sociedade e à de domínio direto ou de comando que se exprime no Estado e no governo jurídico. (Q. III, 1518-1519) (apud STACONNE, 1991, p. 77)
Temos até aqui, portanto, um conceito de estado que envolve duas esferas: sociedade política e sociedade civil, sendo esta última o lugar de realização da hegemonia, através dos aparelhos privados de hegemonia. Nesta compreensão, é no âmbito da sociedade civil que as classes buscam exercer sua hegemonia e ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso. De outro lado, é no âmbito da sociedade política que as classes exercem sua dominação através da força jurídica e da coerção.
Nesta compreensão Gramsciana, por fim, onde colocar os “fatores reais de poder”, enquanto partes de uma constituição? Estariam presentes no Estado em sentido estrito, definido por Gramsci como a sociedade política, ou no espaço da sociedade civil, onde as classes buscam a hegemonia? Certo, de logo, na contemporaneidade de Lassalle, que a forma de governo (monarquia) e o poder repressivo (exército), sem dúvidas, seriam componentes do Estado em sentido estrito, ou seja, da sociedade política. De outro lado, onde se poderiam localizar as relações e organizações de banqueiros, grandes proprietários e operários, senão no espaço da sociedade civil? Por fim, naquela sociedade prussiana de Lassalle, no âmbito da sociedade civil, quem exercia a hegemonia dos aparelhos privados? Certo que não eram os operários, conforme observado por Lassalle nas entrelinhas de sua obra.
Nesta lógica, portanto, será que podemos admitir que a Constituição de um país será o reflexo da hegemonia exercida por determinada classe na sociedade civil, ou mesmo o resultado da luta pela hegemonia, ou seja, as conquistas de cada grupo social seriam exatamente os limites de sua hegemonia, como se fora um consenso inevitável?
Poderia, então, Lassalle nos dizer, agora sob a ótica Gramsciana, que uma Constituição de fato será a Constituição real quando corresponder ao conflito e ao consenso presentes em sua sociedade civil, dialeticamente, em dinamismo constante. Fora disso, conforme escreveu Lassalle, a Constituição não passará de um “pedaço de papel”.
Dessa forma entendendo, podemos então afirmar, como Hesse (1991, p. 24), que “a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo.”
O que seria, por conseguinte, “a realidade histórica” senão as relações econômicas, sociais, políticas e culturais, presentes das esferas política e civil de uma sociedade, senão o conflito e o consenso estabelecido pela hegemonia de uma classe?
Em suma, quem foram os “sujeitos históricos” do processo constituinte de 87/88 e quem são os “sujeitos históricos” na conjuntura dos 20 anos da Constituição Federal de 1988?
Segundo Marilena Chauí, (1989, p. 124), os vencedores, no entanto, são os verdadeiros “sujeitos da história”:
O vencedor ou poderoso é transformado em único sujeito da história não só porque impediu que houvesse a história dos vencidos (ao serem derrotados, os vencidos perderam o ‘direito’ à história), mas simplesmente porque sua ação histórica consiste em eliminar fisicamente os vencidos ou, então, se precisa do trabalho deles, elimina sua memória, fazendo com que se lembrem apenas dos feitos dos vencedores. Não é assim, por exemplo, que os estudantes negros ficam sabendo que a abolição foi um feito da Princesa Isabel? As lutas dos escravos estão sem registro e tudo que delas sabemos está registrado pelos senhores brancos. Não há direito à memória para o negro. Nem para o índio. Nem para os camponeses. Nem para os operários.
No caso brasileiro, finalmente, diante dessa compreensão, parece correto afirmar que a Constituição Federal de 1988 seria o reflexo exatamente do conflito e do consenso de uma determinada época: final de um regime militar, reaparecimento do movimento popular e sindical, pluripartidarismo, novos meios de comunicação de massa sem censura, ou seja, sociedade civil atuante e em conflito pela hegemonia.
Por fim, uma Constituição escrita por vencedores, mas permeada de promessas aos vencidos, que só conseguirão efetivar tais promessas na luta pela hegemonia do processo histórico-social. A permanecer como “Carolinas” na janela esperando tempo passar, o movimento popular corre o risco de vivenciar, mais uma vez, o vaticínio de Michel Onfray: “a história mostra que é complacente com os ganhadores e impiedosa com os perdedores.” (2008, p.11).
V - CONCLUSÃO
1. Vimos, resumidamente, que Lassalle, palestrando a operários da Berlim prussiana de 1862, entende a Constituição real de um país como sendo aquela resultante dos fatores reais do poder que regem aquele país. Esses seus fatores reais do poder, como vimos, podem ser vistos alguns, na compreensão de Gramsci, como componentes da sociedade política e outros como componentes da sociedade civil, local de luta pela hegemonia. Sendo assim, a Constituição real de um país não poderia ser limitada e instrumentalizada por fatores independentes do conflito e do consenso alcançado na sociedade civil.
2. Para Hesse, de outro lado, bem mais perto de Gramsci, a Constituição é condicionada pela realidade histórica e terá pretensão de eficácia somente se levar em conta essa realidade. Sua possibilidade e limites normativos, por fim, resultam da correlação entre “ser” e “dever-ser.”
3. A Constituição, portanto, é mais do que simplesmente os fatores reais do poder de Lassalle e pode sim, sem dúvidas, dependendo da força política dos grupos sociais menos favorecidos – mesmo que ainda não hegemônicos, planejar o “dever-ser” programaticamente e, como defende Hesse, ter vontade e caráter normativo.
4. De outro lado, carecemos de conceitos e categorias da ciência política para compreendermos a conjuntura histórica do processo constituinte de 1987/88 e a não realização das promessas sociais da Constituição de 1988. Dentre eles, destaque-se a compreensão dos conceitos de sociedade civil e hegemonia em Gramsci.
5. Por conseguinte, a Constituição Brasileira de 1988 seria a conseqüência histórica de um processo de luta e conflito pela hegemonia. Escrita por vencedores, mas repleta de promessas aos vencidos. Sendo assim, é tarefa do movimento popular, na luta e no conflito, fazer concretizar a Constituição, sob pena de permanecer na janela, feito “Carolina”, esperando o tempo passar.
REFERÊNCIAS:
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547. Acesso em 16.06.2008.
BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 28 ed. São Paulo: Basiliense, 1989.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
GIROUD, Françoise. Jenny Marx. Rio de Janeiro: Record, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
______, Antônio. Cartas do Cárcere. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991.
KONDER, Leandro. Marx vida e obra. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. 2. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.
ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
STACCONE, Giuseppe. Gramsci, 100 anos revolução e política. Petrópolis: Vozes, 1991.
Notas:
[1]Contribuição ao VI SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA – 20 anos da Constituição Federal de 1988: um balanço - Unir – Campus I – Salvador – BA. - Dep. de Ciências Humanas – Colegiado de Direito – 17 e 18 de outubro de 2008.
[2]Artigos 1º, 3º, 5º e 7º, da Constituição Federal de 1988
[3]LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980.
[4]HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991.
Juiz de Direito em Conceição do Coité - BA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEIVA, Gerivaldo Alves. A Constituição nossa de cada dia: Tensão entre Estado e movimentos populares Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jan 2009, 08:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /16579/a-constituicao-nossa-de-cada-dia-tensao-entre-estado-e-movimentos-populares. Acesso em: 29 dez 2024.
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